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A Graça enquanto tema recorrente na Teologia

A graça divina é um conceito fundamental para o cristianismo, tanto no Ocidente como no Oriente. Dado o seu aspecto na economia da salvação, “bem podia ser dito que as boas-novas do evangelho não são outras que a mensagem da graça de Deus” (GONZÁLES, 2005:145).

Apontamentos a respeito da graça encontram-se presentes nos escritos de teólogos de todas as épocas. Já entre os pais apostólicos, Clemente de Roma afirmou que a aproximação do homem a Deus se concretiza por meio da Sua graça; anota ainda que muitas mulheres, na história, fizeram grandes feitos em decorrência da graça divina, conforme Primeira Epístola aos Coríntios, capítulos 23 e 55, respectivamente (CLEMENTE, 2021).

Ainda nos primeiros séculos do cristianismo, na Epístola de Inácio aos Efésios, observa-se a papel da graça reunindo os fiéis na mesma fé em Jesus (INÁCIO, 2021). Na Epístola de Inácio a Policarpo, logo no preâmbulo, registrou-se a compreensão de que a graça possibilita a propagação do Evangelho.   

Apesar de, por vezes, o leigo contentar-se com a afirmação de que a graça é o favor imerecido de Deus, não raro, teólogos se envolvem em severas discussões a respeito de sua natureza, conceito, papel, alcance etc. Na famosa controvérsia entre Pelágio e Agostinho de Hipona, abriu-se espaço para intensa discussão a respeito da graça. Na Carta 195, encaminhada ao abade e aos monges de Hadrumeto, Agostinho se refere ao pensamento de Pelágio a respeito da graça, como o “veneno da herança pelagiana” (AGOSTINHO, 1999:17).

Tomás de Aquino, em sua monumental Suma Teológica, afirmou que a graça aperfeiçoa a natureza humana. Para ele, a graça é a manifestação do amor divino em direção da humanidade. O Aquinate chega a sustentar que quando o ser humano age em direção ao bem, diz-se que ele é auxiliado pela graça divina, de modo que há na “...pessoa algo sobrenatural que vem de Deus” (AQUINO, I-II, 110, 1, C.).

No cenário da Reforma Protestante, e entre os seus herdeiros, muitos conflitos surgiram a respeito da graça, notadamente diante de qualificativos a ela atribuídos. Nessa quadra histórica, há de se destacar o advento das seguintes expressões: graça irresistível (HORTON, 2017), graça resistível (PICIRILLI, 2002:154), graça preveniente (POPE, 1877:350 e ss), graça comum (KUYPER, 2002:127) etc. Estes conceitos ainda hoje são utilizados e, em certa medida, estão presentes em discussões recorrentes entre calvinistas e arminianos, para citar os dois grupos que mais ocupam espaço na cena protestante.  

Para Calvino, a graça permite ao ser humano cumprir os mandamentos divinos (CALVIN, 1982:248), sendo que o referido pensador não nega que o “coração do homem pode tornar-se flexível à obediência do que é reto, desde que o que é nele imperfeito seja suprido pela graça de Deus” (Idem, 2006:64). Ao seu turno, Jacó Armínio destaca que a “graça inicia a salvação, promovendo-a, aperfeiçoando-a e consumando-a” (ARMÍNIO, 2015: 406). Na mesma senda, o mesmo teólogo atribui à “graça o início, a continuidade e a consumação de todo o bem...” (Idem: 231).  

A Teologia contemporânea, com pequenas variações, segue os parâmetros das discussões acima citadas.

A graça horizontal no Carta de Paulo a Timóteo: a reconfiguração da condição de Onésimo

Conhecida é a passagem bíblica onde o Apóstolo Paulo afirma que a salvação se dá pela graça, por meio da fé, independentemente das obras humanas (Ef. 2:8). A este tipo de graça, que se revela salvadora e permite a aproximação do sujeito caído a Deus, não discorreremos nesta oportunidade. Porém, adiantamos que esta manifestação da graça, costumamos classificar como graça vertical, pois diz respeito a relação do Altíssimo com os seres humanos.

Nosso intento, nestes parágrafos é apresentarmos os efeitos da graça divina na relação entre as pessoas, influenciadas pelo que, de nossa parte, denominamos graça horizontal. Mas, o que podemos entender por este conceito teológico?

De nossa parte, conceituamos graça horizontal como toda a ação humana, de auxílio aos vulneráveis de modo desprovido de interesse e possibilidade de retribuição, centrada essencialmente no amor fraternal. O instrumento que viabiliza esses atos de bondade é a graça divina que, a despeito dos efeitos da queda, permite a exteriorização de práticas benevolentes entre os seres humanos.

Para a exposição do conceito acima expresso, escolhemos a pequena Carta de Paulo a Filemon, dado o registro da intensa defesa do Apóstolo em proveito de Onésimo. Salvo melhor juízo, a atuação paulina é representativa do que classificamos como manifestação da graça horizontal em socorro ao vulnerável.  

Vamos aos detalhes da manifestação da graça horizontal na defesa de Paulo em proveito de Onésimo.

A Carta de Paulo a Filemon foi escrita no contexto em que os escravizados eram considerados coisas. Assim, um cativo não gozava do status de pessoa, sendo destituída de dignidade. Esta é a grave condição dos seres humanos sujeitos ao cativeiro no antigo Direito Romano.

Por outro lado, a condição do escravo fugitivo era mais degradante, pois o sistema legislativo da Antiga Roma, incentivava o dono do escravo a matá-lo em praça pública. O escravizado poderia ser submetido à pena de morte, acompanhada de requintes de perversidade. Excepcionalmente, caso o senhor de escravos entendesse que seria mais lucrativa a manutenção da vida do cativo recapturado, as leis romanas permitam horrendas torturas ou amputação de membros do escravo.

Quando Paulo sai na defesa de Onésimo ele se coloca em auxílio de alguém que, como escravo fugitivo, não poderia retribuir o socorro do Apóstolo. Assim, estamos diante de um auxílio desinteressado, em atenção à pessoa de agravada vulnerabilidade no contexto da estrutura social e jurídica de Roma. 

Paulo, em gracioso apoio a Onésimo, escreve para Filemon rogando que este, na condição de senhor de escravo, não matasse aquele que foi acolhido pelo socorro amoroso do Apóstolo. O apelo feito à escravaria filemoniana foi mais além do que poupar a vida do escravizado recapturado, o que já seria muito para a realidade legislativa do Império Romano. Paulo vai mais além: solicita a Filemon a reconfiguração do status jurídico de Onésimo, conforme se constata abaixo.  

O Apóstolo Paulo pede para que Filemon receba Onésimo “não mais como escravo, mas muito além de escravo, como irmão amado” (Fm. 16). Neste sentido, em sentido inverso à legislação romana, constata-se no pedido paulino a alteração na relação entre o senhor (Filemon) e o escravo (Onésimo). A graça horizontal impõe agora relacionamento fraterno.

Não há mais espaço para que Filemon sacrifique a vida de Onésimo, pois agora ele deveria ser inserido em sua família. Não somente como um irmão, mas doravante na condição de “irmão amado”. Na mesma passagem, Paulo determina que Filemon receba Onésimo como pessoa e como cristão. Ora, esta interseção não é de somenos importância, haja vista que o sistema jurídico romano não atribuía à condição de pessoa aos escravizados. O fato de Onésimo tornar-se cristão, enquanto filho espiritual de Paulo, permitia a ampliação de sua família, não somente estabelecida por vínculos sanguíneos, mas agora por laços de fé.

Mais a frente, não bastasse a inserção de Onésimo na família de Filemon, Paulo ainda faz outro pedido, qual seja: “assim, se você me considera companheiro na fé, receba-o, como se estivesse recebendo a mim” (Fm 17). Com efeito, este requerimento é marcante, pois Paulo, enquanto cidadão romano, usufrui de privilégios impensáveis para os escravizados. Com isso, mais uma vez, a atuação graciosa do Apóstolo procura colocar Onésimo em status jurídico diverso daquele que, como cativo, lhe era conferido pela legislação e os costumes da época lhe impunham.

A história de Onésimo, por si só, é comovente. No entanto, eleva-se em importância quando nela se observa o Apóstolo Paulo, movido pela graça, sair em defesa da vida e dignidade de Onésimo, para comover Filemon a recebê-lo a partir dos parâmetros da graça horizontal. Ao invés de ser recepcionado sob o rigor da pena capital e/ou de toda a espécie de torturas, em suavização às relações humanas, a graça horizontal permitiria o acolhimento amoroso do novo membro da família da fé: Onésimo.

Creatore, ipsi gloria in saecula 

Ivan Durães[1]

 

[1] Diretor de Regulação e Pesquisa da Faculdade Teológica Batista de São Paulo. Pós-doutor em Ciências da Religião. Pós-doutor em Direito. Pós-Doutor em Antropologia. Pós-doutorando em Educação. Doutor e mestre em Direito. Mestre em Ciências da Religião. Bacharel em Teologia, Filosofia e Direito. Atuação como professor universitário na graduação, especialização, mestrado e doutorado. Autor de mais de 40 livros. 

REFERÊNCIAS

AGOSTINHO. A Graça e a Liberdade. In: A Graça II. Trad. Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 1999 (Coleção Patrística).

AQUINO, Tomás. Suma Teológica. Trad. Aimom-Marie Roguet et al. São Paulo: Loyola, 2001.

ARMÍNIO, Jacó. Carta Endereçada a Hipólito A. Collibus. In: Armínio. Obras de Armínio. Trad. Degmar Ribas. São Paulo: CPAD, 2015. Vol. II.

________. Declaração de Sentimentos. In: Armínio. Obras de Armínio. Trad. Degmar Ribas. São Paulo: CPAD, 2015. Vol. I.

CALVIN, John. Treatises Against the Anabaptists and Against the Libertines. Michigan: Baker Academic, 1982.

________. As Institutas. Trad. Waldir Carvalho Luz. São Paulo: Cultura Cristã, 2006. Vol. 2.

CLEMENTE. Primeira Epístola aos Coríntios. In: Pais Apostólicos. Trad. Brian G. L. Kibuuka; Cláudio J. Rodrigues. São Paulo: Fonte Editorial, 2021 (Coleção Patrística).

GONZÁLES, Justo. Breve Dicionário de Teologia. São Paulo; Hagnos, 2009.

HORTON, Michael. Calvino e a Vida Cristã. São Paulo: Cultura Cristã, 2017

INÁCIO. Epístola de Inácio a Policarpo. In: Pais Apostólicos. Trad. Brian G. L. Kibuuka; Cláudio J. Rodrigues. São Paulo: Fonte Editorial, 2021 (Coleção Patrística).

________. Epístola de Inácio aos Efésios. In: Pais Apostólicos. Trad. Brian G. L. Kibuuka; Cláudio J. Rodrigues. São Paulo: Fonte Editorial, 2021 (Coleção Patrística).

KUYPER, Abraham. Calvinismo. Trad. Ricardo Gouvêa. São Paulo: Cultura Cristã, 2002.

PICIRILLI, Robert. Grace, Faith, Free Will: constrating views of salvation – calvinismo and arminianism. Nashville: Randall Horse Publications, 2002.

POPE, William B. A Compendium of Christian Theology. London: Wesleyan Conference Office, 1877.

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