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Durante muitos anos em minha vida tenho atuado no campo teológico. Ensinei teologia bíblica, sistemática, exegese, línguas originais, teologia prática por mais de 30 anos. Dei aulas em quase todos os continentes do mundo, fui diretor de seminário e escrevi artigos e livros. Algumas dessas reflexões foram inclusive traduzidas para outras línguas para ambientes distantes e remotos.

De fato, a caminhada da igreja é lenta. Vê-se uma fragilidade quando se confirmam “enfermidades teológicas” no contexto eclesiástico. Temos de tudo: tradicionalismo irrefletido, sectarismo, misticismo desenfreado, obscurantismo acadêmico, apego a modismos intelectualistas, atitude serviçal a ideologias, aprisionamento a posturas sistemáticas limitadas e até fanatismo perigoso.

Para a minha surpresa, comecei a ver um impressionante progresso teológico nas últimas semanas. Parece que a teologia vai decolar. A razão da minha esperança: senhoras e senhores, quero apresentar a todos: a Teologia da Epidemia. E, agora, com vocês, o Dr. Coronavírus. Passo a palavra ao nosso incomparável professor. O grande mestre da teologia tem larga experiência internacional, numa jornada transcultural invejável, conhecendo quase todas as culturas do mundo, possui perfil flexível, adaptando-se a qualquer contexto, possui enfoque democrático, estando presente em toda e qualquer comunidade, sem fazer distinção entre as pessoas. Onde passa, o celebrado doutor deixa sua marca de transformação e traz profunda reflexão dos ambientes em todos os aspectos. Os desdobramentos na área de espiritualidade foram os maiores dos tempos recentes. Incrível! Deixando o currículo e a trajetória do ilustre mestre já apresentado, vamos ao conteúdo que se tornou o seu legado para esta geração. O que é que temos aprendido nessa Teologia da Epidemia?

Como muitas vezes se reconhece, para tanta gente, o silêncio inspira espiritualidade. Nos últimos dias, o barulho do planeta diminuiu. Está mais fácil meditar e orar. Até a poluição do planeta cansado encontrou pausa. O tom da arrogância de muita gente se foi. Há uma consciência de finitude única em nossos dias. Isso não é novidade, mas a verdade é que caiu no esquecimento. Mas, as últimas aulas do Dr. Corona nos fizeram recordar textos como:

Quando contemplo os teus céus, obra dos teus dedos, a lua e as estrelas que ali firmaste, pergunto: Que é o homem, para que com ele te importes? E o filho do homem, para que com ele te preocupes? (Sl 8.3,4)

Ultimamente, vejo gente mais reflexiva, pensativa, mais “centrada”! O desprezo dos outros diminuiu. O dinheiro, a fama, a formação, a capacidade e a posição foram todos relativizados pela nova realidade. A didática do novo mestre é eficiente. Parece que todo mundo descobriu que não somos nada! Somos frágeis, simples “pó”, que não tem razão para vanglória. E a obsessão e ansiedade pelo controle de tudo que faz de cada um o seu próprio deus, levou xeque-mate. Não há o que fazer. Podem liberar a agenda, esqueçam planilhas, realinhem expectativas financeiras. Agora está mais fácil escutar Jesus:

"Por que vocês se preocupam com roupas? Vejam como crescem os lírios do campo. Eles não trabalham nem tecem. Portanto, não se preocupem com o amanhã, pois o amanhã se preocupará consigo mesmo. Basta a cada dia o seu próprio mal". (Mt 6.28,34).

Quanto aprendizado!

Sinceramente, os ensinos do desconhecido mestre se provaram incríveis. O poder soberano do Senhor se tornou mais palatável. Os limites impostos pelo Criador às ações humanas deixaram inerte muita crueldade. Guerras foram interrompidas! O terrorismo cedeu. O tráfico de drogas e de armas perdeu força. Prostituição infantil, escravidão humana e tráfico de órgãos foram retidos pelas últimas ações de teologia prática do Dr. Corona. Quanto alívio para milhares de pessoas! Para completar, veja mais um toque exegético do inusitado professor:

Venham! Vejam as obras do SENHOR, seus feitos estarrecedores na terra. Ele dá fim às guerras até os confins da terra; quebra o arco e despedaça a lança, destrói os escudos com fogo. "Parem de lutar! Saibam que eu sou Deus! Serei exaltado entre as nações, serei exaltado na terra. " (Sl 46.8-10)

E as lições não param! É muito conteúdo. É teologia completa, detalhada e abrangente. Assim como a igreja primitiva foi despertada de sua letargia pela perseguição (At 6-7), parece que estamos sob a mesma pedagogia. Como é difícil mudar um paradigma! Somos arraigados a padrões, fórmulas, práticas, e assim muda-se a diretriz divina em posturas mortas, petrificadas e perversas. Foi esse o conflito de Jesus com muitos religiosos. Queremos ter o domínio e o controle. Passamos a dominar e deixamos de aprender, de rir e de chorar. É a morte! Uma epidemia terrível. Como Deus trata dessa petrificação letárgica? Perguntemos ao professor. Ele nos mostrou em sua última palestra que o Deus que se revela é um Deus misterioso, que também se esconde: Verdadeiramente tu és um Deus que se esconde, ó Deus e Salvador de Israel. (Is 45.15). Esse Deus é aquele que fez aliança com Abraão em meio a “densas trevas e apavorantes” (Gn 15.12), que entregou Jó à dor, sem que o pobre Jó tenha tido conhecimento do que aconteceu de fato, e que entregou seu filho Jesus à morte de cruz em nosso favor (Fp 2.8). Como entender? Os caminhos inescrutáveis de Deus (Rm 11.33) nos calam em nossas opiniões fúteis e certezas apressadas, humilham nossa sabedoria e nos ajudam a depender de Deus em humildade.

E se somos libertados pelo Deus misterioso, que às vezes se oculta, em sua pedagogia peculiar, fica bem mais fácil quebrar as amarras dos ensinos falsos que acumulamos. Que coisa bonita! Que libertação! O abraço sombrio e doloroso do Deus amoroso e misterioso que nos machuca é o que nos liberta e nos traz a cura!

Agora, vamos aprender. O Dr. Corona é muito capaz. Eficiência única! Ele resolveu nos dar um curso intensivo de Eclesiologia. O primeiro impacto foi atingir o envolvimento de muita gente com a necessidade de reunir-se como igreja (Hb 10.25). Tantos que antes desprezavam cultos e facilmente os trocavam pela fórmula 1, pelo futebol ou por um churrasco, agora “sentem muita falta” das reuniões da igreja. Prioridades redescobertas! Que impressionante.

Em termos da compreensão do que é igreja, com o tempo, parece que nós nos esquecemos de tudo. Começamos a achar que a essência da igreja se define pela instituição, sacramentos, denominação, prédio, templo sagrado, espaço físico, clube de amigos, entre outros elementos secundários. De repente, tudo isso se mostrou fragilizado. Que aula de contextualização e flexibilidade nos deu o Dr. Corona. Assim como Paulo teve que deixar a sinagoga em Éfeso e partir para o ensino da Palavra de Deus na escola de Tirano (At 19.8-10), fomos obrigados a realinhar nossa eclesiologia.

Paulo entrou na sinagoga e ali falou com liberdade durante três meses, argumentando convincentemente acerca do Reino de Deus. Mas alguns deles se endureceram e se recusaram a crer, e começaram a falar mal do Caminho diante da multidão. Paulo, então, afastou-se deles. Tomando consigo os discípulos, passou a ensinar diariamente na escola de Tirano. Isso continuou por dois anos, de forma que todos os judeus e os gregos que viviam na província da Ásia ouviram a palavra do Senhor.

            Criado numa tradição cultural e religiosa muito estrita, Paulo aprendeu muito com o Senhor e nos deixou um legado de entendimento a respeito da Igreja. Vale observar que o trabalho teológico do apóstolo, seu discipulado, sua expressão de comunhão, tudo se fez principalmente à distância no início da expansão da fé cristã. Incrível! Sempre dedicado a suas viagens missionárias, às vezes preso, passando por perseguição, Paulo foi o principal “eclesiólogo” da igreja primitiva e fez o que fez sem seminários, juntas missionárias, templos e instituições denominacionais. De longe ele mandava os “arquivos” de ensino: filipenses.doc, romanos.txt, efésios.docx, e até hoje “estão funcionando”. A “rede de transmissão” era fraca, e os pergaminhos demoravam para “serem baixados”. Até chegarem as cartas e se disseminarem seus ensinamentos demorava bem mais do que hoje! Seus discípulos se reuniam em pequenos grupos, em casas, mas tinham o Reino na vida e no coração, e mudaram o mundo com o Evangelho. Muitas vezes a igreja deixa de lado a essência da fé em Cristo e diaboliza o que não deveria: rádio, televisão, celular, tecnologia, internete, mídias digitais, sem usar esses recursos para o bem do Reino. Que coisa! Se a igreja que criamos está fundamentada em elementos que não subsistem, ela não permanecerá, mas, se tem fundamento no Evangelho, e na flexibilidade de formas realinháveis, tranquilamente poderemos migrar para o contexto digital sem perder a essência da fé. Fascinante! Extraordinário”

            Mas, devo dizer que o mestre teólogo tem sido indelicado em algumas ocasiões. Talvez precise de um curso de boas maneiras. Suas lições recentes foram um “balde de água fria” no triunfalismo religioso de nossos dias. Gente que prometia “cura e prosperidade absoluta” para todos está em dificuldade. Não se ouve mais muita coisa desse perfil triunfalista. A proposta mostrou-se frágil. A compreensão equivocada do “posso tudo naquele que me fortalece” (Fp 4.13) será realinhada pelo estudo do texto, com a ajuda do Dr. Corona.

            Já não há muito a dizer no desfecho desta reflexão. Mas, preciso dizer que guardo comigo uma certa decepção. Parece que o Dr. Corona não teve tão bom desempenho nos seus ensinos. Nem tudo foi eficiência. Depois de tantas lições aprendidas, até mesmo no contexto evangélico, ainda percebo gente se ofendendo, pessoas tentando tirar “vantagem” do próximo em meio à epidemia; vejo enfrentamentos políticos desnecessários, muita coisa triste. Eu já estava tão aborrecido, quase desistindo de tudo, até que encontrei este texto bíblico:

No dia seguinte (Moisés) saiu e viu dois hebreus brigando. Então perguntou ao agressor: "Por que você está espancando o seu companheiro? " O homem respondeu: "Quem o nomeou líder e juiz sobre nós? Quer matar-me como matou o egípcio? " Moisés teve medo e pensou: "Com certeza tudo já foi descoberto! " Quando o faraó soube disso, procurou matar Moisés, mas este fugiu e foi morar na terra de Midiã. Ali assentou-se à beira de um poço. (Ex 2.13-15)

            Em meio à escravidão, o povo de Deus não parava de se ferir e conseguia ampliar problemas e sofrimento! Parece que a coisa não mudou muito. Entendi então que o mal do vírus é mais grave do que eu pensava. Agora descobri por que Moisés largou tudo e abandonou seu chamado. Sem saber o que fazer, eu me sentei e comecei a chorar. Ainda mais agora que o Dr. Corona também falhou. Então, li um pouco mais adiante o texto até que eu pudesse me acalmar. Entre as lágrimas que prejudicavam a minha leitura, de repente descobri que Deus as estava recebendo, e não só as minhas:

Pois agora o clamor dos israelitas chegou a mim, e tenho visto como os egípcios os oprimem. Vá, pois, agora; eu o envio ao faraó para tirar do Egito o meu povo, os israelitas". (Ex 3.9-10)

            Se Deus ouviu a dor do povo que tinha falhado completamente e os libertou por meio do fracassado Moisés, que tinha fugido, e assim o Senhor construiu sua linda história de redenção depois da peste, da mortandade, da quarentena da Páscoa, da escravidão, de tanto horror no antigo Egito, ainda há esperança. É possível ir muito além da teologia do Dr. Corona. Então, respirei fundo, enxuguei as lágrimas, me levantei e saí do meu deserto, pedindo ao Deus misterioso, soberano e amoroso: Eis-me aqui, envia a mim.

Luiz Sayão

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